A todo tempo, o tempo todo

Oscar P. Machado
edição 5

Sem retratos para os porta-retratos, pois com o momento capturado eram vendadas perspectiva e progressão, e encantados os olhos na contemplação do passado, imortalmente registrado, e o que não morre estaria sempre presente.

Uma cama de cabeceira poliândrica, sobre seu corpo, branco de pele lisa e esmaltada, deitaram-se livros pesados, livros leves, livros velhos e novos, alguns românticos outros profundamente filosóficos, alguns permaneceram apenas por umas noites, outros a amaram por mais de um mês, uns poucos retornaram, tempos depois da separação, e foram recebidos com novo ânimo, como se fosse um novo amante, mas nenhum ficou. Pois a leitura das últimas horas é o enredo do sonho, e na monotonia do enredo repetido o sonho adormeceria.

A esse estado chamei eu-folha-branca. E nada me pararia, nada me amarraria a um evento passado, nenhum pensamento me guiaria em tudo e sempre, para todo o sempre. E cada dia seria único e novo, e uma nova verdade se mostraria ou seria descoberta a cada instante. E sem ter ponto-de-vista teria todos, e assim um olhar imaculado, do todo, da parte, em cada e toda parte.

E em mim-folha-branca fiz, com caneta muda, marcas sem tinta, que asseguravam ao leitor mais interessado a possibilidade de consulta, bastava um pouco de esforço, inclinar a folha, buscando a incidência em ângulo certo da luz para desvendar os sulcos de lembrança.

Assim, momentos foram vividos sem retratos serem feitos, livros foram lidos e sonhados sem que conquistassem eternamente sua amante. Tudo registrado em mim-folha-branca, mudamente.

Até que o tempo-em-pó se depositou em mim-folha-branca, escoando por entre os sulcos de lembrança, começando a desenhar, unindo os traços mudos, símbolos novos, novos signos, novas palavras, confusos, desconexos.

O tempo-em-pó se depositou sobre a cabeceira da minha cama, cobrindo aquela pele, como lençol, sob o qual apenas um corpo dormia, sem nenhum livro para sonhar.

O tempo-em-pó se depositou sobre os porta-retratos vazios, deixando marcas fantasmas, imagens nubladas do que fui e um retrato perfeito do que sou.

(Das crônicas da infância da minha maturidade, Curitiba, 31/10/2007 – 10:34)

É necessária a autorização do autor para cópia de qualquer texto desta revista
Respeite os direitos autorais, cite a fonte.

Contato: revista@mariajoaquina.org