Reveses

Edith Aragão
edição 2

Faz um ano. Faz um ano que a cama em que você dormia jaz vazia. Os lençóis, pálidos, lembram a areia tépida do Saara. A marca alva do anel anular já desbotou na desesperança. Olho a penumbra difusa no teto do quarto que muito foi cenário para nossos sonhos; a realidade escorre entre os meandros dos sonhos e borbulham em um caldeirão de desejos proibidos. Penso em tocá-los, mas recolho a mão com tímida hesitação. Estaria acordada? Ouço vozes entrelaçadas em imagens; vozes que se esvaem reticentes de sua existência. São enormes balões que saem de dentro de mim, esbarram nas paredes nuas e explodem em pequenas imagens desconexas. Terão fim? Algo nessa reincidência me confirma suas existências...A loucura é o refúgio das mentes cansadas. A realidade é a penitência de quem sofre. Deito de braços com ambas e sinto seus dedos finos e longos acariciarem-me os cabelos vermelhos; um minúsculo instante em que as grandes tragédias acontecem. Volto com o som do vento que condena minha janela ao seu grito intrépido. O tempo passa com impiedosa morosidade. O passado está sempre atrás da porta e nenhum sol se deita sem que ele beije minha testa para me acentuar as rugas da dor. A noite vem. Oriento-me pelo fino facho de luz que cruza impetuoso a escuridão como dardo vindo da sala de estar. É ele que me diz que o mundo continua seu curso incólume aos meus devaneios. Seria um anjo que veio me ensinar a voar...? A luz é forte, ofusco-me com facilidade. Meus espelhos quebraram-se em estrelas coloridas e meu rosto transfigurou-se, mas ouço o sibilo suave de um coração que insiste em pulsar: som conhecido de ritmo teimoso. Desconfio que vivo e isso é bastante para quem já pouco queria apostas com a vida. Estranho a reordenação das coisas que relutantes abrem espaço entre contundentes lembranças amanhecidas. Seu roupão ainda está atrás da porta (junto com o passado). Sei que as traças irão roê-lo, por isso, fico. Dos fios que sobrarão quero refazer minhas tranças. Encharco os dedos de saliva e com mordaz elegância tento virar a página desse livro em sépia. Ensaio todos os dias sua despedida como o fim de um teatro de longa temporada. Quase ouço os aplausos à distância com rostos conhecidos à platéia. Não estou só. Pinto meu corpo de esperanças e saio às ruas oferecendo minha boca à sedução das palavras. Sonho em prostituir-me ao futuro com dedicada monogamia. Enquanto o sol não nasce, enquanto o roupão não se pui, eu deito inerte nas areias do Saara. Já faz um ano; um ano que eu durmo vazia no quarto.

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