O Pires e a Xícara

Oscar Machado
edição 1

Tomei meu café, recolhia a louça, e na sonolência que se acumulou até aquela manhã de sexta-feira, deixei escorregar o pires – aquele, que não varia no plural – mas, com muita destreza consegui segura-lo, com a barriga ou o quadril, empurrando-o contra aquela gaveta falsa que fica na frente da bacia da pia, que todo mundo sabe que não abre, mas que todos já tentamos abrir.

E eu ali, com a barriga no pires e o pires da gaveta de mentira. Quanta raiva! Já homem, mas ainda com a falta de jeito de menino. Que desastrado! Meu jogo de chá, maculado. E quantos da minha mãe não aleijei? Um copo, um pires, um prato. Mesmo aqueles de plástico, “esses resistem à queda”, “aé? E se jogar na parede?” e nem o inquebrável resistira à minha traquinice.

Esse jogo de chá? Esse jogo, o do pires lascado, eu dei para minha mãe? É, eu havia dado, mas ela me devolveu, tempos depois, ainda na caixa, quando mudei de apartamento. Tinha dado o jogo para ela para que, finalmente, tivesse um completo, mas ela resolveu me devolver. Casa nova, coisas novas, coisa de mãe.

Ma o pequeno malabarismo foi o suficiente para que não caísse e se espatifasse no chão, apesar do esforço o salvamento deixou uma cicatriz: uma lasca na louça. Não ficou inutilizado, mas deixou aquela marca, e agora, todas as manhãs, ele me olha, acusador. Para que ele não se sinta desprezado, eu o escolho, sempre, para assentar minha xícara de café.

Naquele pires quebrado minha infância está inteira.

"... mas ainda com a falta de jeito de menino. Que desastrado! Meu jogo de chá maculado."

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