Se

Luana Tezza
edição 6

A cena teria sido mais dramática se estivesse chovendo. Se ela portasse saia ou vestido branco, estivessem os cabelos escovados, os lábios pintados, seus olhos úmidos. Se ela estivesse ansiosa. Nada disso.

Ana estava tranqüila, os cabelos presos à nuca. Vestia calça jeans, uma camisa larga já muito lavada, as pontas amarradas do lado direito, nó duplo. Ana não me deu tempo para levantar, desprender-me daquela mesa vazia, recepcioná-la, puxar a cadeira, ser um cavalheiro, um cara educado que fosse. Empurrou meu ombro de volta, força igual massa vezes aceleração, senti que eu tinha corpo, os joelhos voltaram a dobrar-se, noventa graus, as coxas paralelas à mesa. Ela sentou-se, foi direta, sem meias palavras disse que aquilo não era novela, que ela não estava grávida, mas queria voltar, e não se sentiu nem um pouco envergonhada por isso. Foi como se ela falasse da chuva, estivesse chovendo. Como a repórter do telejornal que, do estúdio, relata as desgraças que acometem os miseráveis. Eu não disse nada, eu ouvia a notícia. Atentamente. Ela me achou bobo, gritou, bateu na mesa, a garrafa de cerveja cambaleou. Uma repórter parcial, quem diria. Furiosa. Seu olhar doce tornou-se azedo, minha expressão foi amarga, eu realmente quis que estivesse chovendo, uma trovoada poderia ter provocado alguma reação humana nesse morto bêbado sentado, noventa graus. Os joelhos tornaram-se duas Terras, rotação e transação ao mesmo tempo, eu um falso sol fixado no vácuo. Ana me fitou uma única vez enquanto falava. O som não se propaga no vácuo, eu não ouvi o que ela disse, ela levantou e foi embora. Fiquei ali sentado até chegar José, eu sou João e não sei ao certo quem é Ana. José perguntou que cara idiota era aquela, viu Ana ao fundo, segundo plano, resolveu ficar quieto. Ou de novo eu entrei no vácuo.

— José, ta me ouvindo?

A mesa continua vazia e Ana, que já saiu de cena, sussurra que eu ainda preciso crescer para conquistar a audiência. Mesmo o José, eu lhe pergunto.

— Ana já saiu da história e não volta mais.

É José sentado, na minha frente.

A mesa vazia é como o tempo. Pode demorar, continua ali, fiel parceira. José (de novo, tento ser educado) é o vácuo que acompanha. Respiro fundo, tento entretê-lo:

— Acho que vai chover.

A conversa ele continua por conta, não precisa dar corda, fingir que se importa, tentar conquistar. Às vezes eu prefiro os homens. Às vezes eu prefiro o vácuo. Mas a escolha é sempre a mesma, e como repito tanto, decidi começar a análise. Ana me deu o telefone.

— José, ta me ouvindo?

Você me pergunta “e então”? Hoje não tenho vontade de falar mais nada. Certamente eu preferiria que fosse Ana quem estivesse me escutando desse jeito atento, me olhando de revés. Você, você é como o vácuo, e não me preenche nunca.

— Ana já saiu da história e não volta mais.

O que senti foi o azedume, minha expressão foi amarga. A lembrança da cerveja, era doce. Bati a porta e fui embora, ver se eu encontrava a mesa vazia onde eu a havia deixado.

Se é para viver o vácuo, eu não quero pagar. Uma puta me faz sentir mais humano, sabia? Antes disso ele me convence a voltar, ao que respondo: eu volto, só mais essa semana. (Ele não sabe, mas ele vai ouvir, e essa próxima cena, eu prometo, vai ser dramática. Se não chover, eu choro).

Essa droga de semana não passa e de novo eu revivo a hora de gozo, ele me ouvindo sem que eu o veja: se ela portasse saia ou vestido branco...

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