Lia Libidinosa

Andressa Facchini
edição 6

LIA LIBIDINOSA

Pela manhã, Lia recebeu duas palavras nas narinas, trazidas pela brisa úmida e morna da praia. Despertou, então, da cama molhada de suor, procurou um bloco de anotações e alternou a tampa da caneta nos lábios e nos dentes, nos lábios e nos dentes, até que o plástico se deformasse.

“Duas coisas libertam a libido: praia e comida”, escreveu antes de seguir para a cozinha passando a língua no canto da boca e esfregando a barriga com as duas mãos.

O desjejum significava para ela a passagem da carne para o espírito, a transmutação da saciedade em películas mentais, um ritual benigno de revitalização hormonal, mais ou menos como a dormência nas costas: massagem invisível de alguém amando à distância. O trabalho dos intestinos escorria tão místico quanto um mantra.


Ecos Litorâneos


Lia provou o ovo temperado e um clique feito com os dedos no ar confirmou a qualidade da delícia. Comendo, saltava com todos pela mesma praia, entre os versos de Lamartine. Coaxava com os batráquios em festa, celebrando a dependência humana de produtos animais; o ovo, por exemplo. Ao mesmo tempo em que ela podia caminhar com as próprias pernas, sabia que as pernas não tinham força sem a base alimentar.

Às exatas dez horas, seus pensamentos biológicos migraram para os freudianos, analisando a consciência, os fatos e o profundo estado hipnótico. Em quinze minutos, os pensamentos já se direcionavam para o suco de abacaxi na geladeira. Mais cinco minutos para Lia pensar no almoço e num passeio em toda a orla resplandecente do litoral.

Atravessou a porta da casa e cumprimentou os vizinhos com a voz abafada, em uma súbita sensação de monotonia. Cruzou a calçada, pensativa. Chegou à praia tonta, seus pés esfregavam a areia recém-molhada pela onda, os rastros sumiam, engolidos por novas abocanhadas marítimas e a água trazia a frescura de um oceano secreto e infinito.

O corpo de Lia pedia peixe frito e queijos ou manteiga, mas sua alma ardia em sal, estufada de frigideiras, panelas ferventes, cozinha e desejos se derretendo na falta de serem vividos. Lia infernal. Lia ofegante.

Podia se ouvir sua respiração vazia, procurando um bumerangue audacioso nos ares, que vai com amor e volta em sua curva imaginária com prazer sensorial. Mais que amar, a respiração desejava sentir... por entre os ecos litorâneos.


Sons Celestiais


Alguém na beira do restaurante comia delicadamente, tomado pela solidão discreta e provocante da mesa. Pousava os braços ao redor do prato, protegendo a comida e cuidando dos seus grãos de arroz com curiosa intimidade. Era íntimo do que estava provando, parceiro das iguarias selecionadas no cardápio, um amante libidinoso do alimento quente que o estimulava a salivar. E seus movimentos com os talheres eram de tal ingenuidade que Lia se deixou seduzir por eles. Ela esqueceu da camiseta molhada e do verão intenso, permitindo agora a abertura de sua feminilidade, através de uma cena imaginada em que o desconhecido acariciava seus cabelos com a mesma ternura dos dedos sobre a refeição.

Sentia contrações involuntárias, os botões florais rorejados pelo orvalho, a janela blindada se rompendo. Finalmente, o novo mundo... visão sublime e celestial! Ela estava fascinada com aquela aquisição natural de formalidade sutil – o tratamento quase religioso com a batata cremosa e os ovos de codorna. Os olhos grandes invadiam os carboidratos da massa amarela com o mesmo olhar que desvenda uma mulher. A boca absorvia sabores lentamente, com a mesma entrega de um beijo.

Comia. Mordia. Comunhão e benção, cuidado profano e devasso.

Comer é um ato sensível e inteligente.

Era evidente que essa poesia estava nos dois: comiam com intensidade e tinham a pecadora característica do exagero em comum, apesar de que ELE, ele sim era divino.


Uivos Luxuriosos


A ponte ligava a gula à luxúria e Lia metia-se numa tentação plena de tocar aquela divindade afrodisíaca pagando a conta. Afrodisíaco que vem de Afrodite, que vem da beleza nascida do mar. Ele se levantou e começou a sair.

Em um pulo da cadeira, Lia deixou o lugar e o seguiu. Percebeu que ficaria descansando na praia. As horas vespertinas flutuaram, se espalhava junto com a maresia feromônios perfumados, rebolava nas nuvens escassas o poder da satisfação. Lia subia níveis de arrepios e lembrava da relação da comida-paixão desde a infância com personagens como Branca de Neve e Eva com suas maçãs, odaliscas e rainhas egípcias com suas uvas, o imperador romano liderando banquetes e orgias.

Não deixara de observar seu tentador paraíso o tarde toda. A loba uivando na colina. Queria ser protegida, grudada em um globo de carinho que a possuísse, queria a degustação atenciosa, um aperto para depois relaxar.

Levantou da toalha e parou de observá-lo nadando. Fechou os olhos um momento para sonhar a leveza. Agora, o mar delicioso envolvia os dois, os dois nadavam em plenitude entre os órgãos castrados de Cronos. Era incrível, havia encontrado uma preciosidade, alguém que provava e remexia os alimentos como um bebê descobre a forma de segurar a colher pela primeira vez ou quando solta as duas mãos da bicicleta.

Não podia ser verdade aquela perfeição. Demorava tanto para viver assim com vida e em poucas horas era uma árvore amazônica abrindo espaço em seu terreno fértil e riquíssimo. Talvez fosse uma ilusão, um engano, um anjo ígneo que a devorava. Mas era delicioso o vento levando até ela a matéria soporífera do homem que nadava.

Enquanto Lia abria os braços de encontro ao mar e era inundada pela sensação erótica, o mar venenoso levava seu último prazer embora. Enquanto se equilibrava com o torpor de toda a confusão sensorial, ele se debatia desesperado, lutando com ondas ferozes e agressivas. Lia continuava de olhos fechados suspirando com o tato transcendental dele, que em um dia encontrara, nunca tivera e no mesmo dia perdera.

Lia intensa. Afogada em seu mais liberto sonho.

Como ele, afogado na maré violenta.

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