Espera

Edith Aragão
edição 1

Olho o par de chinelos debaixo da cama, abandonado ao pó do tempo, estático em sua mudez provocadora; olho como quem pede perdão por seu esquecimento e, igualmente, como quem decreta ódio a sua imperturbável posição. Sua preservação mostra o passado cristalizado na cena proibida ao toque, na impotência silenciosa de jogá-lo ao limbo como quem rasga a folha de um diário ultrapassado no rio caudaloso do tempo: diamante rijo em sua covalência indestrutível. Uma vez, os pés que o habitara eram os mesmos que entravam pela porta da frente trazendo o sol nas mãos e a música como guia. Uma-vez era terreno distante que ecoava uma realidade esvaída em memórias engavetadas. A música perdeu o tom, o sol esfriou por trás de montanhas perpassadas por neblinas, a porta enferrujou e o tempo puiu a silhueta da cena. Minha vingança era saber que eles precisavam de mim para sobreviver; sobreviver aos conflitos de uma existência maculada pela culpa; sobreviver ao improvável abraço da paz. Vínculo de ódio, vínculo de guerra, vínculo que garantia a benção da impunidade a seus atos insanos. Fazia minha parte: escoava penitente a culpa dessa insanidade mesmo que precisasse me vestir de luto, de noite, de vazio. Eu era a projeção de seu ímpeto marginal e a justificativa de seus erros; era a quarta perna que faltava a sua mesa, o começo e o fim de um caminho perpetrado pela mágoa e por metades solitárias. Esse vínculo atenuava minha solidão paradoxalmente espelhando o féretro do amor: pior que ser odiada, era ser esquecida. O silêncio é a respiração que as palavras precisam para ter sentido do contrário tornam senão um aglomerado de sons sobrepostos. A falta de palavras nem sempre é ausência, mas a impossibilidade de lidar com o excesso. O grito que morre na boca fechada é o mesmo que ricocheta nas paredes da mente feito fogo que rompe a escuridão com fagulhas incandescentes; queimam por dentro porque não transpiram pela garganta escura.

Paro e vejo o vazio a minha volta. Há senão um par de chinelos, ingênuo de sua realidade: esquecido de si e coberto pelo pó. Espera, penitente, os pés que irão domá-lo. Virão? É resignação e paciência em seu tímido cetim azul celeste. Inerte, ele diz que a porta ainda está aberta, que o sol nasce todos os dias e que música é como arabesco: se recria a cada novo intervalo.

Primeiro lugar no concurso "Meu amor é você", promovido pela Editora Ipsis Litteris em 11/2006.

"A falta de palavras nem sempre é ausência, mas a impossibilidade de lidar com o excesso."

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