Do Subterrâneo

Jardel Machado
edição 1

Ninguém pode saber, não, ninguém pode. Mas, e se alguém descobrir? mas não há como. Eu escondo bem, pelo menos acho que escondo bem, acho que ninguém vai notar. Mas será que isso é o suficiente? Acho que sim, é só eu não pronunciar nada a respeito, assim acho que ninguém vai descobrir. Há que se cuidar sempre para que algo não escape, às vezes uma pequena palavra pode denunciar tudo. Sempre a cautela, se descobrem será desconfortável não só pra mim, mas pra muita gente. Cautela, sempre cautela. Falar depois de pensar, para que não escape... cuidado!

Mas será que não vão suspeitar nada? Aí já não sei, porque já não ando bem nos últimos tempos, acho que é devido a essa vida decadente que leva a sociedade nos dias de hoje. Essa maldita sociedade que corrompe a todos, esse hedonismo sempre presente. As pessoas sempre querendo o prazer, sempre buscando o prazer, o prazer em cada coisa que fazem. Se não dá prazer não faço! é o que dizem, tudo bem, não dizem isso explicitamente, mas no fundo é isso. Acho que nem sabem que merda de prazer é essa, ou nem percebem o que fazem, não se tocam da porcaria de vida que levam. Sempre querendo ser “felizes”. Nem sabem o que é isso. Mas não eu, eu sei o que faço. Faço o que deve ser feito e ninguém me diz nada que eu não questione. Só compram a porcaria da felicidade que vende na tevê.

Será que ninguém desconfia? Agora já não sei. Mas não tem como ter certeza? Mas como? Dependendo dos olhares delas às vezes pode-se descobrir se realmente desconfiam... Mas só pelo olhar dá pra saber? Às vezes dá. A Ana me olhou estranho essa semana, logo depois de eu falar “calcular”. Espero que não saiba de nada, caso contrário dificulta muita coisa, sem contar o constrangimento... Mas e se eu achar que elas desconfiam quando elas não desconfiam, na verdade... É, acho que não tem mesmo como saber se sabem ou mesmo se desconfiam... Se eu achar que desconfiam, quando não é verdade, às vezes posso cuidar ainda mais para não falar nada que possa revelar o real que essa própria ocultação do que ia falar pode gerar no outro a desconfiança e, daí sim, eles descobrem a verdade. Maldita verdade que os outros podem descobrir! Porque é que não se preocupam com suas próprias vidas? Eu sim é que me preocupo com minha própria vida, não fico bisbilhotando nada, não me interessa saber da vida dos outros...

Maldito hedonismo!

Será que também sou hedonista? Não, não. É claro que não. A sociedade e a ideologia não me corrompem tão facilmente, por isso não tenho ideologia nenhuma, por isso sou totalmente avesso a isso. Tenho personalidade forte, meus pais e amigos sempre me disseram. Sempre gostei muito de quando diziam assim de mim, isso de ter personalidade forte. Porque tenho personalidade forte é que não me importo com a vida dos outros... O problema é se descobrem tudo. Daí ferrou-se tudo. Será que as pessoas acham que tenho personalidade forte? Acho que sim, às vezes parecem que me olham admiradas... Mas, e se esse olhar for porque desconfiam? Não, não... esse olhar é diferente... esse olhar é de admiração, olhar de “nossa! esse cara tem personalidade!”, é diferente. Mas e se for um olhar de admirado, que eu esteja achando que é olhar de admiração pela minha personalidade forte, quando na verdade é um olhar admirado por saberem da verdade? Tenho que cuidar. Nada pode escapar... imagine só a vergonha... todos olhando e pensando “nossa! logo ele... eu o admirava tanto, achava que tinha uma personalidade forte...” Cautela a cada segundo, preciso me conter para não expressar nada que possa revelar ou mesmo levantar suspeita.

Amanhã tenho que estar lá às sete da manhã. Puxa! Tenho que acordar às cinco e meia. Nem sei com que roupa vou. Acho que vou com aquela calça e esta camisa. Mas essa combinação eu já fiz na semana passada. Ai, ai, ai. E agora? E essa camisa? Não fica bem com a calça... Será que vão reparar se eu for com essa mesma camisa? Não sei... acho melhor não ir com ela. Porque não tentar achar outra que combine? Que tal essa aqui? Deixe eu ver... ficou mais ou menos... mas pelo menos não vou ter que repetir a mesma camisa da semana passada. Pois é.

Como as pessoas são estranhas... são capazes de ficar reparando na roupa que eu uso... nas roupas que uso fazendo a mesma combinação... Será que eles lembram? Sei lá, mas acho melhor não fazer o teste, vai que eles lembram... vão ficar reparando, este cara está com essa mesma roupa, ele já veio com estas mesmas roupas outro dia... Mas a roupa está limpa... Mesmo assim, como vou saber o que elas pensam ou se elas lembram das roupas que vesti na semana passada? A Laura disse que eu ficava bem assim... ela pode lembrar dessa roupa... ela disse que ficava bem, vai ver que estou com a roupa de novo. Será que vai achar que está suja? Mas teve um tempo considerável, está limpa, eu lavei. Será que está bem limpa? Será que não está cheirando? Não, não. Não está. Tem cheiro de roupa limpa.

Será que ela, pensando que a roupa está limpa, será que não vai achar que estou tentando agradá-la? Ela é legal, mas não é muito bonita... só por isso eu não vou querer ela? Mas do que adianta ter uma namorada que não é bonita? Se os outros não ficarem invejando? Tem que ser bonita também... Mas daí eu só vou querer mulheres bonitas? Tem que ser... E se forem burras? Daí também não... Quero uma mulher perfeita então? Não, não, acho que perfeição não existe... Tem que ser inteligente e, sendo bonitinha, já está bom... Ora, que discussão inútil... Não é não... Mas até que ponto tem que ser a beleza dela? Não pode ser feia, não pode ser bonita e burra, não pode ser inteligente e feia... O que é que eu quero? Ai! Nem sei... uma hora dessas me aparece alguém na vida. Sempre aparece. E se não aparecer? Aparece sim... Mas tem que ter personalidade forte. Ah, isso sim...

Acho que Laura estava de bom tamanho pra mim. Mas será que não vai dar muito na cara que eu estou usando essa roupa de novo para agradá-la? Talvez fique, mesmo, muito na cara. Como fazer, então, pra demonstrar um pouco de interesse nela, demonstrar um pouco, não muito. Se demonstrar muito além de me desvalorizar, por parecer que estou correndo atrás, desesperado, ela ainda me pisa no pescoço, se me quiser...Vai abusar de mim, pedir pra que eu faça coisas pra ela e tudo mais. Já posso até ver, ir almoçar com ela em algum restaurante, coisa de domingo, e daí ela pedindo pra eu pegar a sobremesa pra ela, ou ainda alguma coisa do bifê. Amor, pega mais um pouco de pudim pra mim? ou pega mais um pouco daquela lasanha pra mim? Que coisa ridícula! Além de ter que pegar algo no bifê pra ela ainda chegar, sentar no meu lugar, e despejar no prato dela... horrível! Não suporto! Isso fica quase no mesmo nível daquelas mães-passarinho regurgitando na boca dos filhos. Coisa de pobre fazer isso. Se ela me pedir pra fazer isso eu não a quero mais. Mas eu nem estou com ela. É verdade. Mas e se as coisas acontecerem e tal... sempre tem isso. Se bem que acho que as pessoas “acham” que as coisas acontecem. Na verdade fazemos acontecer... mostro pra Laura que estou afim dela e ela já se engraça pro meu lado e eu dou mais uma engraçada pro lado dela e daí acontece... essas coisas de por acaso não existem. Mas também não posso me engraçar muito, se não, não dá certo, ela vai abusar de mim.

Engraçado essa palavra “engraçar”. Minha mãe falava isso: “fulano se engraçou da fulana” ou “fulana se engraçou do ciclano” e por aí ia. Quando a gente acha graça, a gente ri. Se bem que quando estamos “engraçados” de alguém, que estranho falar essa palavra, rimos de qualquer bobeira que ela faça. E sempre que rimos nos exaltamos, acabamos falando mais bobeiras e besteiras e é a partir disso que percebemos se o outro se “engraçou” também. Que palavra esquisita...

Nesses momentos de exaltação a gente fala mais que o normal. Eles não podem saber. Há que se cuidar com os momentos descontraídos. A gente se exalta e fala o que não devia. Estou lá eu, no meio do pessoal e, de repente, deixo escapar uma palavra, umazinha que basta para que desconfiem. Pronto. Acabou, eles descobrem e daí pra frente é só vergonha. O cara da personalidade forte, que todos admiravam se esvai...

Essa roupa? Laura disse que ficava bem. Ou talvez essa? Não sei, amanhã decido. Laura é mais ou menos, “bonitinha” dizem que é feia arrumada, Laura não é feia... e não é burra. Talvez, quem sabe. Mas não quero saber de pegar alguma coisa pra ela no bifê e despejar no prato dela. Horrível isso! Nossa! Olha só a hora! Dez e meia já! Tenho que levantar cedo amanhã, chegar lá as sete e meia. Que merda!

Será que a Laura vai gostar? Só espero que não seja um indício para que descubram.

(muitas vezes alterado – Medianeira, 28 de dezembro de 2006)

"e daí ela pedindo pra eu pegar a sobremesa pra ela, ou ainda alguma coisa do bifê. Amor, pega mais um pouco de pudim pra mim? ou pega mais um pouco daquela lasanha pra mim?"

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