Verdade de Plástico

Bruna Mitrano
edição 11

Descruzou as pernas, levantou do chão sem pressa e calçou suas pantufas de pelúcia (delicadeza particular). Foi até a cozinha e jogou o copo plástico na lixeira de plástico da pia, que já transbordava de pacotes de plástico (nos quais diversas fotografias de comida de plástico expunham sem pudor secreções vermelhas e amareladas).

Avistou, debaixo da pilha de pratos sujos, o tão estimado copo de vidro, único da casa, cuidadosamente furtado do boteco da esquina da rua de trás, onde bêbados alegres ensaiam todos os dias suas coreografias ao som de música muda. Retirou os pratos, pegou o copo um pouco melado e abriu a torneira.

Lavou-o uma porção de vezes, sem notar quando já não havia motivo para lavar. É que não dedicava sua atenção ao que fazia, mas ao que via e tocava: a transparência aliada à solidez. Apoiado na palma esquerda e envolvido pelos dedos da mão direita, o copo não permitia que supusessem seu passado, líquido.

Os dedos dormentes por causa da água fria eram incapazes de desmanchá-lo, como faziam com o copo plástico; nem os dentes enfraquecidos pelo fio de metal do aparelho ortodôntico podiam, por puro vício, mastigá-lo ou criar rasgos verticais. O vidro evocava uma idéia de segurança que logo lhe pareceu ameaçadora. Naquele momento preferiu, não impunemente, o risco da fina pele do seu familiar casulo de plástico.

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