Sobre músculos e zumbis

Renata Nascimento
edição 10

Vendo o corpo de minha irmã naquele estado tive que admitir.
Havia anos que não nos falávamos e agora estou diante de silêncio e névoas. Não voltarei a ter sequer uma oportunidade. A água pinga do telhado e há goteiras no IML. É só o que escuto. Nenhuma emoção se dá em mim e pude compreender duas vezes o meu egoísmo. Ela sempre me acusou de ser a mais fria das irmãs e por isso não agüentou compactuar com a evolução de meu descontentamento. Não a culpo. Se trancar por opção durante a nossa adolescência era fácil; agora, abrir o friezer e tirar o peixe podre de lá de dentro nesta altura da vida, é que esmagador.

Das três irmãs, ela era a mais quente. O seu sentimento de mundo ainda pinça marcas em minhas escamas mortas de um corpo ainda vivo, enquanto que a verdadeira vida agora repousa, e nada tem de mundo.

Aqui estão os pertences da vítima – disse o mais novo vulto do local. Ali éramos nós, os únicos mortos.

Compareci a uma sala branca onde providenciei as formalidades. O vulto me deixou a sós. Fui retirando de dentro de um saco preto todas os últimos acessórios de minha irmã em vida: um colar de pérolas, um anel de casamento, um chiclete amassado que grudara em seu bolso e para o meu espanto, uma bolsa verde musgo. Esta, fonte do nosso último atrito.

Dei partida no carro. A minha irmã era viúva, mas tinha uma filha que morava na Bélgica. Me lembro bem que, na briga que tivemos pelo posse da bolsa, ela manifestou a sua vontade de a presentear com aquela “matéria verde”. O tempo passou e imagino que mais uma vez ela conseguira me enganar. No fundo sabia: eu só queria o pertence por orgulho. Não posso acreditar que mesmo morta ela ainda esfregue na minha cara a sua astúcia.

No elevador, encarei o espelho. Estava mais corcunda do que nunca. Resolvi olhar algo a que não costumo prestar atenção: minha língua. Mexia de um lado para o outro de tal modo que descobri veias por debaixo delas. Eram músculos? E se eu mordesse forte aquelas veias? O elevador parou na hora do suicídio e mais uma vez o tempo agiu sobre mim. Pego o primeiro vôo para Bruxelas pela manhã.

No quarto, ao arrumar as malas, nenhuma lágrima. Dobrei três vezes o mesmo sobretudo, mas não chequei se lá estaria inverno ou verão. Bolsa de banheiro, passaporte e dinheiro. Estava sem um tostão. Não queria pensar, mas já havia pensado: “Irmã, me empresta unzinho?” Abri a bolsa verde musgo para pegar uns trocados. Não quis pegar tudo, vai saber.

Foi a gota da água que me despertou do silêncio. Juntando com a poça do IML, eu ajoelhei no chão e me permiti chorar. Chorei pela minha decadência, por ter realmente pedido emprestado dinheiro vivo à uma morta. Depois do martírio, resolvi esvaziar a bolsa e fazer dela a finalidade de minha viagem. Coloquei dentro todas as cartas e resquícios que havia de minha irmã à minha volta; mais uma barra de cereal. “Já era hora de mudar de apartamento” – o seu fantasma me dizia. Precisou morrer para que eu me enxergasse como um verdadeiro caranguejo: andando para trás e para os lados.

O momento era mais uma vez dela. Sem dúvidas, foi raptada para cima.

Quanto a mim, depois da viagem, ficarei pela metrópole esperando o momento do dia em que lambuzo os dedos com a barrinha de cereal.

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