Reticências

Bruno Scuissiatto
edição 8

A única sinfonia naquele momento é o pingo da água escorrente da torneira desregulada da pia do banheiro, que ao bater lugubremente na porcelana escura soa estanque. Os pingos da garoa fina batem no vidro da janela e rebatem-se entre si, como a naturalidade dos perdigões enfurecidos na abstinência de não alimentar-se. As fusões dos pingos na porcelana escura do banheiro e os pingos leves da garoa matinal são sustenidos de fragâncias sustenidas de tudo estar relativamente perdido.

Sentada na cadeira sobre o cóccix sente estar dolorida, o conforto aparente de sentar-se amparada na porção final das costas a trouxe as dores consequentes da má postura. Entre os afagos da palma da sua mão esquerda consegue perceber o quanto a mesa da cozinha está desarrumada.

Os farelos de pão estacionados e impregandos são menções que ali naquele quadrilátero coberto por uma toalha de algodão fina e simples não senta mais ninguém. Misturado aos farelos de pão estão também resíduos de pó de café e mínimos pontos brancos de açucar.

O estômago insiste que está na hora de alimentar-se, suavemente desliza a mesma mão esquerda de outrora, porém com os dedos contraídos faz massagens sobre a própria barriga. Neste instante escuta uma voz branda que ecoa do fundo natural dos sentimentos.

O dia em que você veio aqui pela primeira vez, a chuva batia fortemente na janela da cozinha. Seus olhinhos castanhos estavam amiúdes. Certo momento ao escutar o forte vento que parecia arrancar o céu do lugar, percebi que sua mãozinhas pálidas de entrelaçaram sinalizando oração. Naquele momento eu poderia entender muito pouco sobre a vida, mas sentia que a resposta jamais iria curar o vazio claro das tardes reclusas em meu quarto. Querida, eles viajaram para bem longe, mas prometeram voltar e vê-la crescer. Assim, todos nós poderemos comer torta de morango e tirar sarro um do outro em tardes sonolentas de domingo.

A lâmpada de 100w ofuscou a luminosidade, a presença da então mulher de agora cedeu lugar a menina chorosa. As lembranças surravam forte seus sentimentos. O belo corpo era contornado por lágrimas e desculpas do tempo em que afastou-se de tudo. A velocidade do tempo deteriorou os sentidos mais nobres e enclausurou o passado esquecido dentro daquela casa.

Impulsionada com os fustigantes momentos recordados sentada naquela cadeira e percebendo a mesa habitada por apenas farelos e restos, resolveu remover a mesa de lugar, retirar aquela toalha sórdida. Acredita que ao mudar a posição da velha mesa sinônimo de perdas e ganhos ao longo dos seus trinta e quatro anos, as lembranças remanescentes serão apagadas.

Ao remover a toalha escutou um silêncio que chegou sem pedir licença. - Os farelos de pão sempre foram motivos para você sorrir, enquanto estava sozinha, inúmeras ocasiões você vestia uma birra infantil e não permitia limpar a mesa.

Certos momentos o silêncio pia com palavras fortes a confrontar as mudanças.

Ponta Grossa, 31 de maio de 2008.

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