Emília ganhou uma alma.

Cynthia Becker
edição 8

Mãos enrugadas sobre o rato do computador. Um minuto de distração. Um minuto de frustração, ela não é como a mulher que passa à sua frente vestida de aliança.Tristes olhos azuis enfeitados por cabelos loiros azedos, denunciam a ascendência germânica de corpo e de espírito.Alemoa, ela é alemoa. Fim dos cinqüenta. O que eu poderia ter sido. Opção de vida? Personalidade tem opção? E se eu tivesse ido aquele dia? E se eu não pensasse tanto? E se eu não tivesse ouvido? A mãe, o pai. E seu fosse irresponsável? E se eu não fosse eu? Que besteira, cabeça vazia oficina do diabo. Fim de tortura. Pausa para o café. Emília, eu preciso falar com você. Walter do Recursos Humanos. Ele, o Walter, lhe anuncia hoje, o fim dela, o fim de vinte cinco anos de casamento com o trabalho. Aposentada... Aposentada. Aposentada! Casa. Corpo deitado, luz apagada, volume baixo da televisão e uma reza para agradecer o que ela tinha, não o que ela era... Que ela tinha que dormir. Seis horas da manhã. Despertador mandando ela para o trabalho. O trabalho não existe. O sono também não existe. Preguiça sem sentir, já era hábito. Rosto desbotado. Um momento feminino, pelos olhos no espelho, bem próximo. Bem longe. Espelho no olhar. Sem quebra de vaidade. Sem quebra de mulher velha. Sina de estar possuída pelo corpo de nuances, de rosto assimétrico, resto de beleza. Bem dentro dela, assim, consciência de alma, conquistada pela vida que virou sobra, sobra de corpo, sobra de pele, sobra de amor. A velha estava lá, em frente ao espelho, cabelo velho. Ar de bruxa... A natureza é traiçoeira, fim de serventia. Espelho eu te quebro! Surto.

(Respira)

Sentimento de efêmero.
Efêmero...
Agora sim, a alma estava quase completa.
Beleza de alma.
Xícara de café de todos os dias.

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