Díptero

Victoria Saramago
edição 7

I
O transeunte noturno

Na noite passada sonhei com o seu rosto clarão fantasmático por entre uns lastros de luzes que me assombravam os caminhos.

Esta noite te hei de sonhar passeando envolto em fumaça por um campo aberto que se me apareceu há anos nalguma gravura de livro.

Depois de amanhã tua presença ainda onírica me haverá de embaçar os sentidos em certa textura porosa que jamais me será dado identificar.

Em uma semana já não sei bem, mas te confio perseverante nas minhas tramas de quatro e pouca da manhã, as que não escreverei, esquecidas que estarão em reflexos e vias insípidos.

Uma quinzena de dias mais, afinal, bastará a que te tenha à minha frente, revoltantemente, evidente à verdade das carnes e dos sangues. E num início de tarde te verei de pé do lado oposto da rua, cada qual de nós à espera de um sinal de trânsito que nunca se abre.

Mas, ainda tendo-te à distância de poucos metros, não te chegarei a reconhecer, e você a mim tampouco. Pois os que te trazem eram e terão sido desses sonhos das camadas mais profundas – as que têm lugar quando da inconsciência completa, a entrega por excelência, e aqui eu ratifico: revoltantemente. Perdido estará você para sempre, então, por me ter vindo em tais sonhos, sendo estes os que jamais se darão a conhecer.

II
O transeunte diurno

Há uma quinzena de dias você estava atrás de mim na fila do banco, e suas folhas de pagamento das antigas dívidas me roçavam as costas.

Uma semana depois, te via subir como eu ao ônibus no ponto final, e pegar depois o mesmo metrô, o elevador mesmo até a mesma porta daquele certo corredor.

Anteontem te espiava no restaurante, almoçando na mesa ao lado da minha um prato de massa, como eu; e da garrafa de vinho com que me serviam uma taça pendia uma gota que viria a cair na tua taça, reparei, tão logo a sua vez chegasse a requerer o garçom.

Esta noite irei ao cinema e só os ingressos de um filme não se terão esgotado. Buscarei a única cadeira livre e lá estará você, sentado ao meu lado, as nossas risadas misturando-se à comédia boba que se há de desenrolar e os nossos cotovelos se chocando pelos braços das poltronas.

A partir de então passarei as madrugadas em claro nas canecas de café e nos cochilos esparsos. E não dormirei, não, nunca mais, no receio de te encontrar passeando-me os sonhos desconhecidos que revoltantemente não recordarei.

Rio de Janeiro, 26/09/2006

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