Intervalo

Luana Tezza
edição 7

Eu só sou aquele espaço do tremor, do ódio e medo, quando tudo balança, e tende, e quase cai e quebra. O intervalo antes da rachadura, depois da calmaria. O momento curto, que eles nem percebem. O intervalo intenso que nos marca à caneta molhada o esqueleto indigesto, diante da rachadura daquele vaso de barro que estrala e reclama como o cristal em harmonia de freqüência.

Malabares, circences, navegantes das profundidades do desespero! Eu, a rainha feminina, vermelha, que se banha em sangue vermelho, que molha os lábios no resto do teu corpo que vai juntar-se ao barro, vejo as marcas rígidas que te marcam o esqueleto. O apito do cristal ao fundo não me afeta. Eu vejo o que ninguém vê, meu bem.

Morreste diante de meus olhos. Sabias que eu, mulher, te veria os ossos, te diria, amor, você foi bem marcado por essa vida. Diria, homem do meu dia, das horas da minha vida: Foste real. Exististe. Concretamente, como o apito do barro, manhoso, que tenta igualar-se ao cristal, e quase consegue.

Homem, que riscos eu trago dentro dessa minha carne? Quantas marcas eu tenho? Eu quero as tuas marcas, amor. As tuas dores profundas que eu nunca senti, as tuas manias desesperadas que não me explicavas, os teus desamores, o teu breve espaço tremido. Me dá, ou antes, me doa os teus riscos emaranhados, dispersos, eu quero concentrá-los em mim, fazer bruxaria. Quero me condoer das dores que você não sentiu, mas cujas marcas estão impressas no corpo que foi teu. Deixa eu te conhecer, que seja agora, meu bem. Me dá esse sangue molhado, que eu nunca senti tocar o meu corpo.

Tuas marcas foram molhadas, caneta molhada, tudo molhado. Estão secas. Jonas, secas, como o cocô de passarinho que é esquecido na rua, e a chuva custa a limpar. Que eu seja a chuva. Aos poucos o seco cede ao molhado. A peneira tenta evitar, mas não pode. O sol te ajuda, me ajuda também. Faz as pessoas saírem à rua, verem as marcas. O sol ajuda a secá-las.

Por que nunca pude te conhecer? Temias as marcas tuas? As minhas? Pois morreste aos meus pés. Infelicidade tua, Jonas? Me diz! Estou gritando, abre essa boca inerte e me fala. Porque eu, sozinha, eu não sei. Não sei se traíste a ti mesmo, ou se foste infeliz, traído pela tua morte. Me fala da tua angústia, homem resolvido! Me fala dos teus medos, confessa que tremias por dentro quando tentavas me acalmar. Porque a marca minha eu sentia, eu sempre senti, e eu te falava, Jonas. Eu te falava de cada espinho que me apertava, e tu te condoias de minhas dores, apartávamos. Egoísta, Jonas. Foste um egoísta toda tua vida. Eu quis poder sentir teus gemidos, mas tu os fazia juntarem-se às marcas tuas, e isso te tornava pesado.

Nos últimos anos, Jonas, ignoraste teus rascunhos empilhados junto aos ossos, petrificados e podres, que batalhavam por encarnar uma onda sonora, um gemido que fosse. Sabias que irias morrer, que o grito poderia nunca mais acabar. Agora morreste, e o grito não existiu, não pra ti. Mas, sabes, eu ouço – também ouves comigo! – o teu grito, esse vaso que quebra ao meu lado, esses dois segundos, doem, doem sim, amor. Intermináveis. Eternos. Até a tua morte, e estás morto, e eu ainda ouço o gemido agudo que não existiu! As tuas marcas são fortes, e profundas, Jonas. Mas o teu medo era maior. O teu medo de não dar conta do teu grito desesperado, de que ele fosse maior que você.

Agora te digo adeus, como sempre pediste que eu o fizesse, e não fiz durante toda a tua vida. Agora, eu me vou. Me vou, Jonas, me vou porque já morreste, e só me ouves nos meus delírios, delírios de infância. Hoje sou mulher, não acredito neles. Só creio no que vejo, e são as tuas marcas que te feriram que eu vejo. E o que eu ouço, é esse grito, que só vai durar a minha vida. Ele também morre.

Agora vou, vai também.

Adeus, Jonas.

(Pliim – cacos no chão. Barro, vidro? Já não estou lá. Eu, intervalo intenso e curto, acabou. Assustados, aglomeram-se e oram pela eternidade do homem morto. O barulho de Jonas quieto, os gemidos entalados, o grito desesperado? Nunca ouviram. As marcas? Não. Eles vêem o corpo morto, que vai juntar-se ao barro. Depois varrem os cacos, e seguem as vidas. Minha vida, eles varrem junto, a cada vez que não ouvem o grito ardido, o desespero engasgado, o vermelho suplicante. Toda vez que ignoram a vida machucada, no morto. Leva dois segundos. A morte de Jonas acontece todos os dias.)

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