O poder de um triângulo

Renata Nascimento
edição 12

Ela havia parado em pé diante da janela da cozinha. Com uma de suas pernas levemente dobrada, a panturrilha suspensa entregava o sinal de cansaço. Parecia uma égua no meio de um campo infindável. De vez em quando o seu olho descansava no horizonte, bem longe, a uma distância que nem se quer notara o céu daquele típico domingo xôxo que antecedia um fatigado almoço. A moça que trabalhava na casa admirou a patroa por alguns instantes e sorriu sem que ela percebesse. Para ela o céu estava branco e esfumaçado, parecido com o interior dos livros pesados espalhados por aquela casa. O filho único cresceu, já era um homem e raramente visitava os pais. Durante aquele domingo ele trouxe à esposa, os sogros, o cunhado, a namorada do cunhado, todos para passarem um dia longo, juntos. Compartilhavam assim, ao passarem o sal de mão em mão, uma idéia de família. “Nunca subestime o poder de um triângulo” a anfitriã pensou quando a mãe da nora cortou simetricamente a torta de morango na hora da sobremesa. Novamente desejou não reconhecer as bifurcações de sua cabeça. Por onde quer que as conversas se desenrolassem o seu raciocínio era levado a treinar novas possibilidades e caminhos. Era quase involuntário, torcia para que ninguém percebesse. Com o passar dos anos aliás, ela ficou tão boa que as expressões de seu rosto e os movimentos de suas mãos acompanhavam toda a farsa. Diante dos olhares alheios, a impressão de ela ter embarcado nestas histórias contadas por vozes cruzadas, convencia de fato. Mesmo que na verdade entrassem como ficção na mente dela. Talvez a farsa pudesse ser grupal; e então a dona da casa catava um cinzeiro sujo, ia atrás de um acessório indispensável e voltava para a cozinha. Lá tomava ar, discreta, no mesmo cantinho de antes. Ia de encontro com o seu desencontro e o assumia sem temer. Às vezes se sentia dentro de um cubo suspenso no ar onde nenhuma estrutura fixa a mantinha no chão. Sem controle de seu talento tão pouco, haveria de ter alguma. Era raro a sua cabeça trombar com algum tipo de limite. Mas tudo haveria de se encaixar, de vez em quando encaixava, assim como teve uma felicidade assustadoramente comum quando a casa ficou pronta. Na sala, sentado na cabeceira da mesa, o marido fumava orgulhoso um fedorento charuto. Tinha uma nobre intimidade consigo. Sem nenhuma pressa, levava o fumo lentamente até a boca. Quando ria, emitia um riso grosso, baixinho deixando aparecer os dentes visivelmente amarelados. O controle universal que ligava o projetor, telão e subwoofer, finalmente havia funcionado e ninguém parecia fazer cerimônia quando o assunto era futebol. Tanto gozo que valera a pança! Já ela, amena aos momentos mais emocionantes da partida, acompanhou o jogo de chocolatinho em chocolatinho temendo a imensa digestão que estaria por vir. Depois de se despedir das visitas, agora com mais intimidade física, apagou as luzes e subiu para o quarto. Com a técnica habitual de remover a maquilagem sentiu saudades do horizonte infindável. Afagou o travesseiro. Fritou entre lençóis. Aos poucos se submeteu a um estado de não consciência por onde foi conduzida para além das temidas estradas. Visualizou um céu imenso que remetia a pinceladas impressionistas. Mal pode acreditar quando lembrou do fato no café da manhã. Pediu para a moça que trabalhava em sua casa para buscar alguns livros na sala; eles chegaram surpreendentemente rápido. As duas não sabiam mas compartilhavam uma prova tímida, bem íntima, de vida.

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