Espaços e sombras

Bruno Scuissiatto
edição 12

Tocavam a campainha do apartamento ao lado, sempre no começo de tarde. O azul da tarde invadia a sala e calmamente junto ao silêncio sentenciavam o peso vespertino. Abraçada a sua solidão pegava recortes da coleção de revistas de moda de invernos passados. Todas as modelos muito bem vestidas, bonitas como fossem incólumes ao tempo. Urgentemente se perguntou em que estação estava, a preocupação lhe doeu os ossos, por um momento ficou com remorso de estar restrita ao verão. As folhas secas desta estação eram sobras da primavera que adoeceu no mesmo sentido do seu coração. Sentia falta de todos os momentos que restavam da sua ultima saudade adormecida. Em sonhos não despertados pelo inescrupuloso despertador ela tinha duvidas em falar sobre certas coisas. Entre todas suas opressões mais expostas estava o receio de falar a respeito do amor. Acreditava que todos os modelos de amor, quando posicionados em escalas evolutivas de contagem, perdem o sentido para as banalidades de outros ângulos míopes da vida. Ficou com medo de voltar a falar de amor, pelo menos nesta tarde. Sentia remorso de ficar sempre com lembranças que a aturdiam e depois permaneciam em sua cabeça como fossem partes de sua família. O cachorro do apartamento ao lado estava sozinho, aliás, sempre ficara sozinho durante as tardes, seus donos saiam para cuidar das suas vidas profissionais - ele não parava de latir quando escutava a campainha tocar. A campainha tocar é um sonido propagado por alguém que chegou. Muitas vezes me sinto como um cachorro trancado dentro de um apartamento, não que eu tenha vergonha de latir, mas eu divago, penso em prosa e viajo na poesia do sentimento. Quem saiu, não voltou mais, deixou apenas um maço de cigarros e um cartão amassado do natal de 88 – Seja como for, seja sempre amor, seja sempre você, amor, amor meu – estava impresso em letra cursiva. Ler isso é agredir minha alma, porém como sou duas, agrido a alma e purifico o corpo. Volto a relembrar quando eu lhe perguntei certa vez umas duvidas sobre o que sentira na época – Você me ama o suficiente para sentir que ama de verdade para sempre? O sinto na minha frente dizendo com os lábios quase encostando um no outro – Certamente a amo, mais que possas imaginar e menos que possas sentir – falado isto, punha-se a sorrir, um sorriso que seduzia mais que qualquer outra coisa no mundo. Nestas horas eu me punha de pé, jogava as costas para trás, admirava meus seios e dizia olhando para ele – Viver apenas uma vez com você não basta – os sorrisos dos dois abriam dois mundos de abstratos de realidade.

Tais palavras rasgavam a sua doce garganta e feriam fonemas que alucinados estavam por não poderem dizer um nome, uma mísera palavra. Terrivelmente os sentimentos não dormem dentro de mim, me acordam todas as madrugadas por volta das 3 horas da manhã. Mesmo acordada sinto a recordação de mãos dadas com os sentimentos próximas daqueles retratos empoeirados e bonitos. O que mais me incomoda todos os dias ao acordar em casa, é que neste apartamento sou obrigada a domesticar todos meus anseios e conviver com meus desejos. Quando estou no trabalho, volta e meio sempre estou com a cabeça naqueles dizeres do cartão, principalmente em sua parte final – seja sempre você, amor, amor meu. Estranho que mesmo quando estou com alguém diferente, não que seja implicância ou comparação minha, mas não o tiro da cabeça, os versos crescem e já formam um mosaico de frases e sentimentos tão bem guardados aqui dentro de mim. Entusiasmada com o momento vespertino e azul da tarde exclamou – vivemos para o agora e para as lembranças – sorriu, como fizesse questão de pedir desculpas por nascer e morrer nos sentimentos. Resolveu fumar e a cada trago voltava a pensar mais em tudo o que mais lhe assolava e consolava. A campainha do apartamento ao lado continuava sempre a tocar durante as tardes.

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