O poder vermelho

Ronaldo Brito Roque
edição 12

Mamãe cortava, lixava, arrancava cutículas. Eu, no meu canto, só podia
pensar que aquilo era bobagem. Por que não resolver tudo com um
simples cortador de unha? Pele, água quente, esmalte, a dor, sim, era
quase nenhuma, mas e o tempo? Por que não gastá-lo com um livro ou
filme? Por que o trabalho inútil de criar mais uma superfície onde já
havia uma casca bastante eficiente, ainda que dura e fria? E depois, a
corrosão. A segunda casca se desfazia e era preciso gastar mais uma
tarde para uma nova camada de tinta. Desde cedo eu sabia que seria
muito diferente de mamãe. Minhas unhas ficariam expostas, não havia
motivo para cobri-las. Os homens que se conformassem. E as mulheres,
eu as olhava de cima, não desperdiçava meu tempo e meu dinheiro com
cores inúteis. Eu tinha mais o que fazer com minhas tardes de domingo.

Mas, quando ele apareceu, eu vi nos seus olhos alguma coisa mais firme
e convicta que minha petulância. Ele parecia satisfeito consigo mesmo,
e isso me assustava, eu que tanto tentava me transformar. Eu queria
descobrir que força era aquela que o sustentava, que chão ele tinha
achado para pisar no meio de tanta onda imprevisível. Mas ele não se
revelava, ele apenas me olhava daquele jeito limpo e sereno. E fui aos
poucos percebendo que era preciso encontrar outro meio de indagá-lo,
era preciso submetê-lo a algum inquérito definitivo e silencioso, e o
problema é que eu não tinha nem idéia de como começar. Foi quando
aquelas lembranças vieram à minha mente com a força imprevista de um
pequeno impacto. Procurei mamãe, vi as suas mãos cruas e pálidas, e
senti medo. Pensei em lhe perguntar por que não havia mais cor, mas
logo percebi que a resposta não me saciaria. Eu estava inquieta,
arisca, obscuramente revoltada. Eu precisava de um ritual, não de uma
explicação. Desci as escadas correndo - nem sei por que fui pelas
escadas - e confesso que me senti um pouco derrotada quando paguei
pelos pequenos vidros vermelhos. Mas depois, trancada no quarto, fui
aos poucos recuperando minha confiança e lucidez. O contorno tinha de
ser nítido; a cor, uniforme e compacta. Aquela pequena superfície
tinha o dever intransferível de atestar toda a minha solidez. Saí do
quarto sentindo uma alegria estranha e completamente nova para mim.
Acho que pela primeira vez na vida senti vontade de mostrar algo à
mamãe. Ela pegou minhas mãos, reparou nelas, contemplou-as como se
olhasse de longe o vôo de um pequeno pássaro. Senti que uma nova
compreensão, profunda e silenciosa, se instalava entre nós. Achei que
nem era preciso sorrir.

Quando ele me ligou, não fiquei surpresa. Eu também tinha encontrado
um chão onde pisar. As ondas começavam a se tornar previsíveis, como a
órbita da lua, que as gera e justifica. O ritual estava concluído.

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